Por Carolina Villela
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta segunda-feira (15) para declarar inconstitucional a Lei do Marco Temporal (Lei 14.701/2023), que estabelece critérios para o reconhecimento de territórios ancestrais e demarcação de áreas dos povos originários. O relator havia pedido para incluir o julgamento sobre o tema em sessão virtual extraordinária na última sexta-feira (12),visando dar continuidade ao processo iniciado na semana passada.
O ministro Flávio Dino acompanhou o relator, porém com ressalvas importantes, propondo a ampliação do prazo de cumprimento das determinações de 60 para 180 dias e a declaração de inconstitucionalidade de artigos adicionais da lei. Os demais ministros têm até o dia 15 de dezembro para apresentar seus votos. O Tribunal analisa conjuntamente a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 87 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, todas sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Na última quinta-feira, o plenário ouviu as partes interessadas no assunto e concluiu a fase de sustentações orais, que revelou posições divergentes sobre a constitucionalidade da norma.
A sessão virtual extraordinária seguirá até o dia 18 de dezembro, quando os demais ministros do STF deverão apresentar seus votos.
Urgência e importância do julgamento destacadas pelo relator
No início do seu voto, o ministro Gilmar Mendes ressaltou a gravidade do tema em discussão. “Considero este julgamento de extrema urgência e importância para os cidadãos brasileiros, não só pela densidade apta a abalar o pacto federativo e a convivência harmônica e pacífica entre concidadãos, mas também em decorrência da instabilidade social, econômica e político-jurídica que o tema suscita, ocasionando lamentáveis mortes e conflitos no campo”, afirmou o relator.
O ministro destacou que a indefinição jurídica sobre demarcação de terras tem resultado em violência e insegurança jurídica em diversas regiões do país.
A Lei 14.701/2023 foi aprovada pelo Congresso Nacional em 2023 e estabelece o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referência para comprovar a ocupação tradicional indígena. A norma tem sido alvo de intensas críticas de movimentos indígenas e organizações de direitos humanos, que a consideram inconstitucional e contrária aos direitos territoriais dos povos originários.
Laudos antropológicos ganham flexibilização no voto do relator
O ministro Gilmar Mendes determinou mudanças significativas nos critérios para elaboração de laudos antropológicos. O relator estabeleceu que o registro de estudos antropológicos pode ser feito em “áudio ou vídeo”, eliminando a obrigatoriedade cumulativa dos dois formatos prevista na lei. A nova exigência não se aplica retroativamente aos laudos já finalizados e entregues à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) antes da vigência da lei.
Quanto aos procedimentos administrativos, a expressão “desde o início do procedimento” recebeu interpretação conforme a Constituição. O relator estabeleceu que essa referência deve ser compreendida como a abertura da fase instrutória, quando a Funai oficialmente inicia o processo e começa a primeira etapa de identificação e delimitação do território. Os processos demarcatórios ainda não concluídos devem se adequar à nova legislação, mas os atos administrativos praticados anteriormente à vigência da lei permanecem válidos, garantindo segurança jurídica aos procedimentos em curso.
O ministro Gilmar Mendes votou ainda para reconhecer a existência de omissão inconstitucional quanto ao artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determina a conclusão da demarcação de terras indígenas. O dispositivo estabelece prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição de 1988 para a conclusão das demarcações, prazo que foi amplamente descumprido pelos sucessivos governos.
O relator propôs prazo de 60 dias aos Poderes Públicos para cumprimento integral de todas as determinações estabelecidas na decisão, sob pena de responsabilização.
Benfeitorias de boa-fé e direito à indenização assegurados
Gilmar Mendes declarou inconstitucionais dispositivos que tratavam de benfeitorias realizadas por ocupantes não indígenas em terras reivindicadas como indígenas. Para o ministro, essas benfeitorias devem ser consideradas de boa-fé até que sejam declarados os limites da demarcação pelo ministro da Justiça, por meio de portaria específica.
O voto do relator também assegurou o direito à indenização para particulares afetados pelo redimensionamento de delimitações anteriores, mantendo o entendimento fixado no tema 1.031 de repercussão geral. Qualquer pessoa alcançada por nova delimitação terá direito à compensação financeira.
Além disso, o ministro determinou que qualquer interferência estatal no uso de terras indígenas deve ter expressa motivação baseada no princípio da proporcionalidade, assegurando o direito de consulta prévia, livre e informada às comunidades indígenas envolvidas, conforme a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Flávio Dino propõe ampliação de prazo e artigos adicionais
Ao acompanhar o relator com ressalvas, o ministro Flávio Dino propôs que também sejam declarados inconstitucionais os artigos 10, 23 e o parágrafo 2º do artigo 26 da Lei 14.701/2023. Em seu voto, Dino foi enfático sobre a exploração econômica indevida em territórios indígenas: “Nada obstante a clareza do dispositivo constitucional, não tem sido poucas as tentativas para mascarar a indevida exploração econômica por não indígenas em territórios indígenas”.
O ministro destacou que o afastamento do parágrafo 2º do artigo 26 não implica vedação total de colaboração ou direção de atividades econômicas por não indígenas, já que existem exceções constitucionais previstas, desde que submetidas a um processo legal rigoroso. O ministro também sugeriu ampliar o prazo para cumprimento das determinações de 60 para 180 dias, dada a complexidade das providências a serem adotadas.
Em seu voto, Flávio Dino criticou a falta de regulamentação das atividades econômicas em terras indígenas, destacando que a previsão constitucional existe desde 1988, porém permanece sem a devida regulamentação até o momento presente. “Tal lacuna, lamentavelmente, tem fortalecido atividades clandestinas e altamente deletérias, com exploração ilegal do garimpo – inclusive com grande participação de facções criminosas em torno do ‘narcogarimpo'”, afirmou.
O ministro ressaltou que é imprescindível a observância das regras e o respeito aos direitos indígenas, incluindo o direito de participar ou não das atividades econômicas. “O que não se admite é que os povos indígenas sejam ignorados no processo decisório, em uma espécie de ‘atropelo’ via fatos consumados ou que sejam participantes subalternos de projetos privados em seus territórios”, concluiu.



