Por Fábio Pannunzio
O ano de 2025 marca um momento singular na história do Judiciário brasileiro, caracterizado por uma postura assertiva diante das ameaças democráticas. Ao final, os que se insurgiram contra a ordem institucional foram apenados e punidos com penas rigorosas. Mas até que ponto essas conquistas estão garantidas?
Para analisar este cenário, conversamos com o Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), Alfredo Attié. Attié é Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela USP e Mestre em Direito Comparado pela Cumberland School of Law (Samford University). Titular da Cadeira San Tiago Dantas da Academia Paulista de Direito, da qual é presidente, ele também atua como professor e pesquisador da Escola Paulista da Magistratura. Autor de obras fundamentais como “A Reconstrução do Direito” e “Montesquieu”, o magistrado oferece uma visão crítica e histórica sobre o papel das cortes na defesa do Estado Democrático de Direito.
A condenação dos golpistas e o salto histórico
HJur: 2025 foi um ano desafiador, mas reparador para a magistratura. O Brasil, historicamente atrasado em relação aos vizinhos como Argentina e Uruguai na punição de golpistas, finalmente rompeu esse ciclo. Qual é o tamanho do salto do Poder Judiciário, que atuou com tanta assertividade neste processo?
Alfredo Attié: De fato, houve um ganho e um salto enorme para a história do Poder Judiciário brasileiro. É uma história de altos e baixos, mas, na maior parte do tempo, o Judiciário esteve vinculado às oligarquias. Isso se deve não apenas à formação dos juristas nas escolas e na prática, mas também ao desenho institucional do Judiciário desde o Império, feito para dar suporte à dominação social, política e econômica que as oligarquias exercem.
O Brasil carregava uma dívida enorme em relação à responsabilização dos autores dos inúmeros golpes, sobretudo no período republicano. Costumazmente, os perpetradores eram perdoados por si mesmos, através de anistias que eram, na verdade, autoanistias. Isso deixou marcas profundas e foi responsável pelo cenário pós-queda da presidente Dilma Rousseff e a interrupção da construção democrática de 1988.
Durante o que chamo de “regime anticonstitucional” de Jair Bolsonaro, tivemos aos poucos o despertar do Supremo Tribunal Federal para seus deveres constitucionais. No final daquele governo, o Judiciário começou a reagir aos ataques contra o Estado Democrático de Direito, culminando na resposta à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O saldo importante deste ano é que, pela primeira vez, o Brasil condenou pessoas da mais alta gradação — presidentes, generais e ministros — que levaram adiante um golpe de Estado. É um convite e uma intimação para que o Judiciário se ligue à cidadania e cumpra o compromisso de 1988 com os direitos humanos e sociais.
Modas, teorias exóticas e o lavajatismo
HJur: O Judiciário muitas vezes é permeado por “modas” doutrinárias, da fase do “preto, pobre e prostituta”, passando pela Teoria do Domínio do Fato no Mensalão, até o Lavajatismo e o retorno ao Garantismo. Quanto do resultado atual se deve a essas modas e quanto à disposição individual de figuras como o ministro Alexandre de Moraes ou a uma mudança institucional?
Alfredo Attié: Essa questão está vinculada à origem do nosso Judiciário no Império e sua conexão com as elites, o que gerou um apagamento crítico. Isso permitiu a exacerbação de ativismos que não são jurídicos nem políticos, mas antijurídicos e antipolíticos, voltados a acabar com a relação entre o povo e seus representantes.
O Lavajatismo é testemunho disso: a adoção de teorias estranhíssimas, a importação de um blá-blá-blá de teorias norte-americanas sem validade nem lá, nem aqui. Foi um grande protagonista de uma destruição muito séria.
Sobre a reação, o protagonismo pessoal deve ser valorizado. O fato de Alexandre de Moraes presidir o TSE e os inquéritos no STF foi decisivo para desbaratar o esquema criminoso. Institucionalmente, a maioria do Supremo aderiu a esse projeto de defesa democrática, embora ainda existam dissidências lamentáveis de quem não entendeu sua função. Contudo, o Judiciário como um todo ainda é muito diverso e carrega vícios antigos, fruto da falta de ruptura após a última ditadura. As pessoas que aderiram ao regime militar continuaram em suas funções e formaram discípulos, perpetuando preconceitos, racismo e discriminação. Precisamos de um despertar constitucional que acabe, por exemplo, com a Justiça Militar — que não deveria existir em tempo de paz — e solucione a questão gravíssima dos presídios, depósitos do povo pobre, preto e periférico.
Legado para o futuro e perspectivas de luta
HJur: A punição aos golpistas fortalecerá nossa democracia de fato? Temos trincheiras difíceis, como a disposição da extrema-direita no Senado de retirar poderes do STF. Como será esse ponto de equilíbrio institucional?
Alfredo Attié: A extrema-direita se enraizou na política brasileira — no Congresso, nos executivos estaduais e municipais. O período pós-golpe contra Dilma e os anos Bolsonaro permitiram que esse grupo entrasse sem obstáculos nos cargos públicos.
Além disso, não vivemos tempos bons para a democracia no mundo. Estamos sob o que chamo de “Estado de Sítio” contra a democracia, promovido pelas big techs e corporações internacionais que são contrárias à regulação estatal e à democracia participativa. As redes, que chamo de “antissociais”, facilitam esse cerco.
A condenação dos golpistas no Brasil veio atrasada em relação aos vizinhos, mas em um “tempo melhor” no sentido de ser um tempo mais difícil, o que abre uma esperança. O futuro dependerá da participação cidadã e de um despertar cultural. Nós, juristas, teremos um papel importante não de ensinar, mas de escutar o povo, as periferias e os indígenas, para criar canais de expressão democrática. O povo tem desejo de democracia e não é tolo; se tiver os canais adequados, impedirá que a moda lamentável do fascismo se torne definitiva.


